Par
Deus, coitada vivo:
pois non ven meu amigo:
pois non ven, que farei?
meus cabelos, con sirgo
eu non vos liarei.
pois non ven meu amigo:
pois non ven, que farei?
meus cabelos, con sirgo
eu non vos liarei.
Pois
non ven de Castela,
non é viv’, ai mesela,
ou mi-o detem El-rei:
mias toucas da Estela,
eu non vos tragerei.
non é viv’, ai mesela,
ou mi-o detem El-rei:
mias toucas da Estela,
eu non vos tragerei.
Pero
m’eu leda semelho,
non me sei dar conselho;
amigas, que farei?
en vós, ai meu espelho,
eu non me veerei.
non me sei dar conselho;
amigas, que farei?
en vós, ai meu espelho,
eu non me veerei.
Estas
dõas mui belas
El mi-as deu, ai donzelas,
non vo-las negarei:
mias cintas das fivelas,
eu non vos cingirei.
El mi-as deu, ai donzelas,
non vo-las negarei:
mias cintas das fivelas,
eu non vos cingirei.
Pero Gonçalves Portocarreiro
“Par Deus, coitada vivo...” coitada no sentido de
hoje, que merece pena... mas, merece por amor, então vivo coitada, apaixonada,
“pois” porque não vem meu amigo (amado)... Que farei?
Ela se pergunta e ela mesma responde: ‘- meus
cabelos’ (é um vocativo) com sirgo eu não vos liarei (ligarei).
Sirgo é uma fita que simbolizava que a pessoa
estava presa ao amado, era mais ou
menos como um anel de noivado. Isso é muito simbólico porque antigamente as
mulheres não andavam com cabelos soltos, então, o atar os cabelos significava
que a pessoa estava presa àquela a quem lhe deu o sirgo e só soltaria seu
cabelo em homenagem a ele. Como ele não dá notícias, ela decide: ‘eu vou romper
o noivado com ele’.
É uma cantiga de amigo ou de amor? De amigo,
certo? É ela falando, a coitada, falando sobre o amigo, desesperada porque ele
não dá notícias... ao ponto tal de desistir do amigo.
É
paralelística? Não, porque tem que fazer um par e aqui tem 5 – como pode ser
paralelística?
Outra estrofe... Castela é um reino de Portugal,
centro da expansão castelhana... onde a rainha Isabel casou com o rei Fernando
Aragão; então, os reinos se uniram, se expandiram com a política do casamento e
ficou não propriamente a Espanha, mas sim, vários reinados e, Castela, que andava
em luta com Portugal, sempre brigaram. Primeiro Portugal brigou para conquistar
sua independência, depois, brigou para manter e depois, ficou dependente de
‘Castela/Espanha’ (quando D. Sebastião morreu; o Brasil também pertencia à
Espanha naquele tempo [1580-1640]). Percebemos essa luta aqui, não vem de
Castela: ‘non é viv’, ai mesela = não é vivo, morreu... ‘ai mesela’, ai coitada
de mim – mesela, miserável... ou é o rei que o segura lá e não deixa que ele
venha pra mim.
Conclusão:
‘mias toucas de Estela’ – touca era uma vestimenta para cabeça e havia toucas
célebres, essas toucas de Estela – é
uma região de Portugal famosa por fabricar lindas toucas.
Por que ela não vai usar as toucas da Estela?
Porque foram lembranças dele e, usá-las seria dizer que ainda o ama, que ainda
espera por ele, mas, ela cansou de esperar.
Próxima
estrofe:
“Pero
m’eu leda semelho” – mas eu pareço alegre...
Como?
Ele morreu por lá e parece que estou alegre!
Então ela fica espantada com aquela leveza que
tem quando rompe com o namorado.
Mas,
e se ele está vivo? Não sei o que fazer... Então, pergunta às amigas e ela
mesma responde.
O espelho não era um presente qualquer na época,
era valioso e muito simbólico porque o espelho dado por ele e ela se vê no
espelho, se vê nele que é uma integração dos dois, por isso eu não vou me ver no espelho... eu não quero mais isso e, pergunta para
as amigas, mas ela já sabe o que vai fazer: vai romper.
Próxima
estrofe:
“Estas
doas mui belas”... É um verdadeiro quadro aqui: é uma moça que se encontrou com
as amigas e está se despindo das lembranças dele – ‘estou apaixonada, sofrendo por amor porque meu amigo não vem, e se ele
não vem o que eu faço?’ Ela mesma decide: fala consigo mesma, com os seus
cabelos – humaniza os cabelos e é como se eles fossem o símbolo da ligação com
o amado.
Estrofe
final:
...eu não vos negarei os presentes (as doas), ela
não quer mais porque não quer lembrar-se dele e usar as coisas que ele deu (porque
significaria que ainda continua amando...).
“– mias cintas das fivelas...” Era amigo generoso,
certo? As roupas da Idade Média eram chamadas ‘balaios’ e iam até o tornozelo;
eram amarradas na cintura com um cordão porque uma cinta de fivela era muito
caro e também difícil de fazer.
A cinta de fivela lembra o que? Põe ao redor da
cintura, vai se cingir com ela; é um contato carnal e, uma cinta também era um
presente simbólico, quer dizer, é estar abraçada por ele, a cinta era o abraço
que ele dava na cintura. Ela quer ficar livre disso...
É um poema cuja função referencial é rica: nós
ficamos sabendo que as mulheres daquele tempo atavam os cabelos e não era só
por enfeite, mas também porque era símbolo de estar comprometida; sabemos
também, que havia luta entre Portugal e Castela; e era possível que os rapazes
ficassem por lá (na luta); que havia uma fábrica de toucas em Estela e que dar
presentes era algo comum – e naquele tempo havia um costume civilizado de que,
rompido o compromisso, devolvia-se tudo e que as cintas de fivela eram um
presente bastante rico...
Qual a Função
predominante? Emotiva. Está presente a Função Conativa? Sim, as amigas. Sobre a
Função Referencial já falamos; a Função Fática é sempre banal – como é que as
cantigas chagaram até nós? No século XIII, chegava por meio de canções (poucas
pessoas liam).
Não é paralelística, é um pouco mais difícil, mas
nós vamos reparar que a construção é semelhante de cobra para cobra. Até hoje,
na língua castelhana, existe a palavra copla que passou para cobra
(estrofe) e terminologia usada na época.
Mas o que nos interessa na
literatura é a Função Poética. Sabemos que essa, é uma cantiga de amigo pelo
assunto; não é paralelística, mas tem uma construção bem poética: o 1º verso
rima com o 2º? Sim. A 3ª palavra com a 5ª? Sim, rima consoante. Sirgo
rima com amigo. Observe se a rima é apenas sonora ou tem valor semântico
– valor de significado, ligação de sentido? Tanto vivo, amigo e sirgo
– o amigo vivo de deu o sirgo; farei/liarei ou não farei/não liarei,
então a ligação da consequência: ‘o que é que eu faço? Eu ligo se meu amigo
está vivo, se não está eu não ligo mais... não prendo os cabelos.’
O esquema da rima vai ser
o mesmo (AABAB), pode-se falar em refrão aqui? Se muda não é. Porque o refrão é
a repetição total – se quiser falar em semi-refrão, pode. Seria só: “Eu non”, a
ideia é a mesma porque o verbo vai mudar em razão do objeto: liar/sirgo –
trazer/touca – vier/espelho e cingir/fivelas... mas, fundamentalmente o sentido
é o mesmo: ‘não vou usar coisas que me lembrem ele.’
E qual é a razão do
refrão? Enfatizar uma ideia, pois, ajuda a memorizar. O refrão bem feito é
aquele que faz uma ligação perfeita com o anterior – veja a primeira cantiga:
há uma continuidade semântica e continuidade sintática do dístico, então há uma
soma de ações – é paratática porque há uma coordenação.
Sobre a autoria das
cantigas, apenas homens escreviam interpretando a mentalidade feminina,
descrevendo como era a sociedade de antigamente, etc...
Hoje eu parei para ler (e recitar...rs.) essa Cantiga de amigo - me lembra o Elomar...
ResponderExcluirAdorei a forma como foi construída, e o Português castiço só a faz mais bela.
Gostei!!!
eu nao percebi qual é o modo que está presente a confidência amorosa nesta cantiga .!
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